sábado, 25 de fevereiro de 2012

Vontade

   Ela escrevia qualquer coisa. De longe pareciam muitas letras seguidas umas após outras, uma grande mancha de tinta. Com a aproximação a mancha ia diminuindo e tudo ficava mais nítido, até as suas expressões de concentração e aplicação. Tensão, aproximação máxima e chegada. Sentados ao seu lado podíamos vê-la a escrever, focada na folha. Nada mais importava, nem gente, nem espaço, nem tempo. Olhando para ela víamos uma jovem nos seus trinta. Olhando para a folha víamos letras, sempre a mesma: A. Desenhavas A’s entre duas linhas paralelas, seguidos numa fila. Um estreito, outro largo, todos iam sendo desenhados com cuidado para seguirem o modelo da letra computorizada do canto superior esquerdo.
   Sentados ao seu lado veríamos passar uma criança levada pela mão de uma mãe bem aperaltada. Veríamos a criança curiosa olhar para a folha dos A’s e reconhecer o seu trabalho da escolinha, rindo, e a mãe com um olhar de pena misturada com altivez. Veríamos tudo isto, mas ela, focada na sua escrita, não tinha tempo, espaço e muito menos, gente.
   Não sabemos quando, mas a jovem vai sorrir quando aprender a escrever “vontade”.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Expectativa

   Sentiam ódio um do outro. Para além do ódio, atrevo-me a dizer que sentiam nojo, repulsa. A vida conjunta tornara-se saturante, desgastante, até chegar ao ponto de ser insuportável. Tinha-se tornado numa relação progressiva, em direcção à arrogância e ironias malditas.
  A luta era constante. Havia tentativas para mudar de atitudes, mas o comportamento voltava a cair no mesmo, naquele escuro buraco que parecia a noite de lua nova em locais longe da realidade. Insultos raivosos, choros arrependidos e novas tentativas. Passou por todas estas fases com exactidão, mas sem ter noção disso, e porém o sentimento que ficava era o ódio.
  Quando nascera ele? Quando aparecera este sentimento, este conceito? Ele sabia bem quando fora. No tempo em que passara a ter noção do tempo, quando conhecera o sentido da responsabilidade, quando tivera a sua opinião, a sua própria vida, a sua independência. Nessa altura despertara o ódio. Era irónico o facto de decidir rebentar na melhor altura para tomar a liberdade de viver, no seu verdadeiro sentido.
  ‘Metes-me nojo’ disse naquele dia em que lágrimas se misturavam com fúria.
  ‘Porque será?’ interrogou o outro pacificamente e face vincada de experiência.
  ‘Exerces controlo em mim. Incentivas-me a fazer algo, com os teus argumentos filosóficos sobre a vida, e abandonas-me depois, nos momentos em que caio em mim e vejo ao que me obrigaste. Dizes que sou livre de experimentar e ser o que quero, e eu, cego, sigo-te pelos caminhos que me levas. Quando chegar ao fim sei que nada me espera, não terei futuro.’
  ‘Eu não forço ninguém. Eu sou apenas a tua expectativa frustrada à espera de uma oportunidade de brilhar.’
  ‘Brilhas demais, mais vezes do que seria suposto. Simplesmente desaparece. Peço-te que desapareças.’
  ‘Quando morreres farei o que me pedes. Até lá, não poderei. Como seria possível viver sem consciência? Eu apenas existo porque tu, e só tu, pões uma alta expectativa em ti. Tão alta, que quando não a alcanças sentes ódio de ti.’
  ‘De mim? De ti, cuja culpa tens.’
  ‘E o que sou eu?’
  ‘Não sei…’
  ‘Eu sou tu. O teu duplo ‘eu’. Sou o queres fazer medrosamente, sou os teus sonhos, o teu fracasso, o teu podre. Sou o teu verdadeiro ‘eu’, porque somos o que pensamos. Mas não me aceitas, como fazes com os teus comportamentos calculados.’
  Quando ele morrer tudo ficará no sítio certo, mas durante o caminho apenas se pergunta ‘Porque terei que viver comigo?’