Sou dois. Na realidade sou três,
mas a verdade é que nunca me lembro do corpo. Não lhe tenho raiva alguma,
simplesmente a carne e o osso não me fascinam. Enfim, sou três mas não como o
pai, o filho e o espírito santo, já que os meus são imperfeitos e um se ausenta
frequentemente.
O que mais me espanta não é o
facto de eu ser dois, antes o tempo que o levei a descobrir. Anos de
experiência, tentativas, falhanços, quedas e gritos para chegar aqui: a minha
própria bifurcação. Não vou entrar em explicações sobre as minhas duas
assoalhadas, apenas declaro que uma completa a outra, mas não de forma
romântica como dois amantes. Vejo mais por este plano: um é o electrão e o
outro o protão e, por estarem em concordância nas quantidades , anulam-se
formando este ser que sou.
Vale-me o conforto de saber que
Pessoa era mais de o dobro em relação a mim. Mas este afago não apaga a
tristeza e a dor de ser mais de um. Enquanto que cada um deles é único, no seu
sentido mais singular, ambas as minha partes precisam uma da outra para formar
este anião: o meu nada existencial, o meu vazio.
“Ah, como ele tem carácter”-
exclamai vós depois de isto lerem. Mal sabeis o sentimento de que nascem as
minhas palavras. O meu entendimento não alcança a miséria Pessoana sofrida, mas
delicia-se com cada verso seu. Não ente as razões de Sá Carneiro, mas o meu
corpo vibra só de ler a sua poesia. Como poderia eu pedir-vos compreensão? Este
meu mar de iões está tão afogado como a Atlântida.
Joana, Henrique, Tomás, Clara,
Filipa, Eduardo, Célia, Joaquim… Nomes há muitos, gente sem fim. Eu? Também
tenho um nome, mas em nada adianta eu vos dizer qual é, não me ficam a conhecer.
Na verdade, nada de mim se desvenda no meu nome; foi a simples escolha dos meus
pais, que decidiram atribuir uma palavra a um corpo vivo para que ele reagisse
ao seu chamamento. O meu nome não é uma tabela nutricional: não tem os litros
das minhas glórias e das minhas derrotas, não tem as gramas do meu orgulho e os
quilos do meu nojo, nem as calorias da minha doçura e amargura. O meu nome é o
que vós vedes, é isto, palpável, fácil, tocável, tão simples e acessível.
Pois tenho a dar-vos uma notícia
mais estrondosa que a reatribuição dos subsídios de férias: o meu nome não está
só, nunca esteve, nunca estará. No meu nome cabem mais do que letras, no meu
nome cabe um bicho desconhecido do mundo, desconhecido de mim. É tão indomável
como um cavalo selvagem, tão feroz como um felino, tão veloz como um gavião,
tão esquivo como uma lebre, tão leal a si mesmo como um cão. Que nome lhe dá?
Respondei! Que nome lhe dá? Já dizia José Saramago: “Dentro de nós há uma coisa
que não tem nome, essa coisa é o que somos.”
Não me elogiem, não batam palmas,
não se orgulhem. Ferem-me profundamente, é como se saboreassem o meu
apodrecimento como uma sobremesa. Por detrás destas frases há um bicho, foi ele
que escreveu. Por detrás de mim há um bicho.
Se tiverem coragem de o tentar
compreender, chegarão a um largo, a uma grande praça, a uma enorme nação, a um
continente, a um planeta, a uma galáxia, a um universo: o mais puro amor.